ESPAÇO COLECTIVO ARTISTICO E CULTURAL - COORDENADO PELA POETISA AMÉRICA MIRANDA - E ONDE SE INSEREM AS CONTRIBUIÇÕES DE TODOS OS TERTULIANOS, TANTO EM VERSO COMO EM PROSA, COM O OBJECTIVO DE DIVULGAÇÃO E HOMENAGEM AO GRANDE POETA ELMANO SADINO !
Terça-feira, 15 de Agosto de 2006
BOCAGE - POLEMISTA DE TODAS AS HORAS
BOCAGE, ANTIILUMINISTA?
POESIA
Prof. Adelto Gonçalves
Na tentativa de fazer uma releitura da poesia de Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) sob uma nova perspectiva exegética, Leodegário A. de Azevedo Filho, professor emérito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Academia Brasileira de Filologia, escreveu o opúsculo O contra-Iluminismo na poesia de Bocage, publicado em 2003, em que, com base em sua produção poética, procura mostrar que o poeta não foi iluminista, neoclássico ou arcádico, mas sim romântico, pois, em muitos de seus versos, “a emoção sobrepuja a razão”.
A partir do soneto que começa por “Importuna Razão, não me persigas”, o filólogo, que já nos deu a edição crítica da lírica de Camões em oito tomos até agora, observa que, nele, o diálogo com a razão privilegia a loucura, construindo Bocage “o seu verso sobre as ruínas da temática arcádica ou pela desconstrução de suas normas”. Para o professor, nesse sentido, poder-se-ia dizer que a sua atitude poética já é de todo antiiluminista, pois se opõe a qualquer forma de racionalismo.
Em seguida, Leodegário A. de Azevedo Filho recorre ao soneto que começa por “Já Bocage não sou!” para concluir que, depois da passagem pela prisão no Limoeiro, nos Estaus, no Mosteiro de São Bento e, depois, no Real Hospício de Nossa Senhora das Necessidades, o poeta, dividido internamente, tenta reconciliar-se com os valores que lhe foram impostos pelo poder. Na impossibilidade de uma resposta cabal para a dúvida quanto à real conversão de Bocage ao catolicismo dominante, o professor lembra que é melhor estudar a sua produção em termos conflituais ou de permanente tensão entre a loucura e a razão.
Depois, observa que a personalidade romântica, que define Bocage, vivia em luta com a personalidade clássica, que nele se formou pela cultura, concluindo que foi a sua poesia antiiluminista que, sem dúvida, preparou o terreno para o advento do próprio Romantismo na língua portuguesa.
O professor Leodegário A. Azevedo Filho escreveu este opúsculo antes de ler o meu livro Bocage – O Perfil Perdido, publicado pela Editorial Caminho, o que só por estes dias está a fazer. Por isso, sem falsa modéstia, tenho certeza de que, com base nas novas informações de arquivo que obtive depois de profundas pesquisas, deverá avançar em suas conclusões e, quem sabe, transformar este opúsculo num ensaio mais alentado, talvez um livro.
Entre as informações que o professor Azevedo Filho deve levar em conta é que, depois que passou por um processo de “reeducação”, Bocage continuou a se opor ao poder vigente, ainda que, em muitos de seus versos, mostrasse o contrário. O que me parece é que, provavelmenre para evitar uma nova volta à prisão, o poeta preferiu adotar uma “máscara”, uma “persona”, atrás da qual, muitas vezes, escondeu seus verdadeiros sentimentos, fazendo os versos que os poderosos do momento – a monarquia e a Igreja – queriam ler.
Até aqui não se sabia com exatidão quanto tempo Bocage ficara detido, mas em meu livro mostro que foram quase 17 meses, pois tendo sido detido a 7 de agosto de 1797 só ganhou as ruas no último dia de 1798. Quer dizer, não foi uma detenção rápida, razão mais que suficiente para que redobrasse a vigilância sobre suas próprias palavras. Depois que deixou o Hospício das Necessidades, o poeta continuou os seus embates com os censores da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros, especialmente o padre Julião Cataldi e Francisco Xavier de Oliveira
Os censores embirravam exatamente com o erotismo, condenando “o fogo lascivo e as imagens indecentes” que animavam os versos de Bocage – o que era isto senão Iluminismo? No livro Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária, de Robert Darnton, lê-se que “o Iluminismo foi conduzido por grandes livros de grandes homens, e a Revolução inspirada pelo Iluminismo: continuava sendo culpa de Voltaire, culpa de Rousseau”.
E boa parte da poesia de Bocage, não a encomiástica, mas aquela que corria manuscrita por todo o país de mão e mão era subversiva – especialmente a que começava por “Pavorosa ilusão da eternidade” – e seguia o que se fizera em França para corroer os alicerces em que se assentava o poder de Luís XVI. Tal como na França, a atuação de Bocage e outros poetas ditos libertinos fazia parte de um processo de deslegitimação do Antigo Regime.
É difícil entender um universo mental tão diferente do nosso, como esse de 200 anos atrás, mas parece claro nas respostas que deu aos censores que Bocage continuou a desafiar o poder, recusando-se até mesmo a corrigir determinados versos, embora, em outras ocasiões, tenha sido mais flexível, procurando sinônimos menos ofensivos aos olhos da censura. Além disso, é preciso lembrar que Bocage, mesmo depois da prisão, continuou a freqüentar reuniões de sua loja maçônica, o que significa que continuava adepto dos ideais iluministas.
Foi já depois que mudara para um andar da Travessa de André Valente, no Bairro Alto, etapa derradeira de sua vida, que o poeta acabou denunciado à Inquisição, em novembro de 1802, por uma filha adolescente – quase uma menina – de seu amigo Roque Ferreira Lobo, poeta de poucos méritos, morador à Rua da Era, perto da Calçada do Combro, administrador do Correio do Reino e oficial de secretaria da Real Mesa da Comissão Geral do Exame e Censura dos Livros.
A denúncia, que mostra claramente que Bocage continuava a participar dos círculos maçônicos, só não prosperou porque o governo, sob pressão de França, por aqueles dias, não tinha interesse em perseguir pessoas que pudessem ser consideradas adeptas das idéias liberais, as “idéias do século”. Nem o intendente geral de Polícia, Pina Manique, andava com o prestígio de antes, pois vivia pressionado pelo embaixador francês Lannes, que exigia a sua demissão. Era mais um “leão sem dentes”.
Ficam aqui estes fatos a favor da tese de que Bocage foi e continuou a ser iluminista nas idéias, ainda que pré-romântico na maioria de suas produções poéticas. Mas, como observa de maneira percuciente o professor Leodegário A. de Azevedo Filho, o poeta foi, antes de tudo, um autor muito complexo, “pois tem várias faces ou apresenta múltiplas dimensões em sua poesia”, razão pela qual esta não é a primeira vez nem será a última que levará os críticos à divergência.
________________________________
O CONTRA-ILUMINISMO NA POESIA DE BOCAGE, de Leodegário A. de Azevedo Filho. Rio de Janeiro, SBLL, 32 págs., 2003.
_________________________________
Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – O Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Adelto Gonçalves
***