HERNÂNI CIDADE 2
“... Mais do que em qualquer outro dos escritores portugueses seus contemporâneos, teve repercussão em Bocage o agravamento profundo, naquele momento histórico vivido em todas as nações da nossa cultura, do conflito permanente entre a ordem e a liberdade. Em sua vida como em sua arte, já teremos notado que oposição semelhante resultava da educação recebida e dos impulsos do temperamento. Era assim natural fosse nele mais sensível a caótica desordem geral. No fundo, um grande momento de crise de crescimento do indivíduo, que o Iluminismo e o Enciclopedismo tinham favorecido, ao ponto de não mais caber nos velhos quadros das Instituições, desde a da Família às do Estado. No mundo clássico, uma hierarquia tradicional, abrangendo todas as relações entre a sociedade e o indivíduo, punha este na dependência dos quadros sociais prefixos e definitivos. Do nascimento à morte, o indivíduo tinha de adaptar-se a tais quadros, como figura escultórica em fachada de igreja, tomando a estatura, constrangendo-se na posição exigida pelo nicho ou cavidade a que era destinada. No mundo que em oposição lhe sucede, e que chamamos romântico, é o indivíduo que submete à sua expansão os quadros, não previamente formados, mas a formar. Passa da sociedade para o indivíduo o centro impulsor do mundo que se reorganiza.
O conflito entre as duas realidades, na hierarquia do mundo, teve repercussão no conflito entre o sentimento e a razão, na hierarquia interior, e daí a era caótica em que se viveu, até a reconquista de um novo equilíbrio – que ainda estamos longe de atingir ... Bocage, segundo o vemos na sua biografia, dá repercussão a este conflito, ele mesmo tem dentro de si, ética e esteticamente, muito de clássico e romântico. Sentimo-lo na sua biografia, acidentada das evasões de um irrequietismo constitucional de ser em oscilação, por isso mesmo em descontentamento que, radicado em si próprio, mais de uma vez julga motivado por um mundo circundante. No fundo, o sentimento doloroso do desnível entre a altura do seu ideal moral e a baixeza do seu teor de vida. Secundariamente, e no plano puramente estético, a diferença entre o seu ideal estético e seus desbordamentos e ímpetos românticos." ( continua )
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