ESPAÇO COLECTIVO ARTISTICO E CULTURAL - COORDENADO PELA POETISA AMÉRICA MIRANDA - E ONDE SE INSEREM AS CONTRIBUIÇÕES DE TODOS OS TERTULIANOS, TANTO EM VERSO COMO EM PROSA, COM O OBJECTIVO DE DIVULGAÇÃO E HOMENAGEM AO GRANDE POETA ELMANO SADINO !

BOCAGE NO DEALBAR DO ROMANTISMO
Por Hernâni Cidade ( * )
Tendo vivido de 1765 a 1805, seria o Poeta já por exteriores motivos de cronologia, mesmo que o não fosse por intrínsecas razões de temperamento, um ser de transição, oscilando, na vida, como na arte nela radicada, entre tendências opostas de em conflito. Com efeito, o último quartel do Século XVIII e o primeiro do XIX são, em Portugal como na Europa ou no mundo europeizado, a fase intercalar de duas culturas sucessivas que, se bem subjacentemente uma se continue na outra, em aspectos de superfície se repelem e digladiam.
Não é preciso dizer que se toma aqui a designação de Idade Clássica, em que Bocage foi educado, e a Idade Romântica, que o Poeta sob vários aspectos anunciou, não como dois receituários de expressão literária, mas como duas atitudes de homem em face do mundo e da vida, da Natureza e de Deus.
A Idade Clássica era dominada pela preocupação da ordem racional, a que procura sujeitar, senão o que se afigura imutável e imperecível, como directa e indirecta criação divina, ao menos quanto se toma como livre criação da vontade do homem a literatura e a arte, a organização política e social.
A ordem racional exigia obediência à hierarquia que, no homem, sobrepunha a vontade esclarecida pela razão às tendências sentimentais ou aos impulsos instintivos, e na sociedade fortalecia a autoridade familiar ou corporativa, estatal ou religiosa, de modo que o indivíduo lhe ficava dependente, não apenas em sua vida mais subjectiva-sentimental ou intelectual mas ainda em sua actividade profissional.
Na Idade Romântica tudo foi, senão subvertido, ao menos profundamente abalado. No homem, a razão cedeu ao sentimento o poder mais de uma vez decisivo na direcção do procedimento, enquanto gradualmente se ia reconhecendo ao misterioso Inconsciente a intuição que melhor do que a razão penetrava no mistério que somos e no mistério que nos envolve, e o génio colectivo, a que teríamos devido as línguas, as religiões, as epopeias anónimas; na sociedade, o indivíduo emancipou-se e cresceu interiormente, a cada passo desbordantemente, e a organização política e social teve de reformar-se, no sentido de lhe permitir o realizar-se quanto possível em plenitude. Daí a libertação de quanto nele até então era recalcado pela pressão social: no que respeita às actividades criadoras, na literatura e na arte, a imaginação, a expansão sentimental, o gosto do sensível, a preferência da sensação à ideia, da observação da realidade física à análise de realidade moral, a sobreposição de quanto mais directamente exprimisse o indivíduo, a quanto reflectisse o universal e permanente, objecto da razão.
Naturalmente, entre as duas atitudes sucessivas há as formas de transição, que em certos aspectos se escapam da primeira, sem de todo se integrar na segunda e é o que se verifica, a nosso ver, na obra de Manuel Maria Barbosa du Bocage, por isso mesmo considerado um pré-romântico.
Três SONETOS DE TRANSIÇÃO :
A )
Olha, Marília, as flautas dos pastores
que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
os zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali, beijando-se, os amores
incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
as vagas borboletas de mil cores!
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
ora nas folhas a abelhinha pára,
ora nos ares sussurrando gira:
Que alegre o campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
mais tristeza que a morte me causara.
B )
Se é doce, no recente, ameno estio,
ver toucar-se a manhã de etéreas flores
e lambendo as areias e os verdores,
mole e queixoso deslizar-se o rio;
Se é doce mares, céus ver anilados
ouvirem-se os voláteis amadores,
seus versos modulando e seus ardores,
de entre os aromas do pomar sombrio;
Se é doce mares, céus ver anilado
pela quadra gentil, de amor querida,
que desperta os corações, floreia os prados;
Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
dar-me em teus brandos olhos desmaiados
morte, morte de amores, melhor que a vida.
C )
Ó retrato da morte, ó morte amiga,
por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
de meus desgostos secretária antiga!
Pois manda Amor que a ti somente os diga,
dá-lhes pio agasalho no teu manto;
ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
dorme a cruel, que a delirar me obriga.
E vós, ó cortesãos da escuridade,
fantasmas vagos, mochos piadores,
inimigos, como eu, da claridade!
Em bandos acudi aos meus clamores,
quero a vossa medonha sociedade,
quero fartar meu coração de horrores!
( * ) - Fonte : Hernâni Cidade, Bocage, Edit. Presença, Lisboa 1986