BOCAGE VERSUS TRADIÇÃO I
Ironia de um destino infeliz que se prolongou para além da morte: Bocage é hoje ainda para o rural analfabeto da mais remota aldeia, para o garoto precoce das ruas, para a regateira dos mercados de Lisboa – Bocage é hoje ainda apenas um grande farçola, descarado e vadio, que dava respostas a tempo e tratava as coisas pelo nome. E ante essa imagem tosca fixada na tradição, pouco mais que um nome de personagem cómica a autorizar dichotes de mau gosto, acode-nos a palavra do poeta na agonia: «Já Bocage não sou».
Dizia-o na hora da suprema renúncia, sentindo que já a mesma personalidade se lhe desagregava e diluía nas sombras do fim: «Já Bocage não sou».
Mas, repetimo-lo nós, involuntariamente, imaginando o que o poeta diria se visse o que dele resta na tradição popular: já Bocage não é, com efeito, esse Bocage de feira; a máscara grosseira e deslavada oculta o rosto fulgurante de um dos maiores líricos portugueses – o maior do Século XVIII.
Ironia de um destino estranho. Porque Bocage odiou justamente as formas inferiores de contacto com o público e estigmatizou a “literatura de cordel»,a insulsa trivialidade dos almanaques, a venda ambulante de livros que rebaixava ao nível de vil mercadoria a obra pura do espírito. E muitos dos seus contemporâneos experimentaram o vigoroso sarcasmo com que chicoteava os traficantes de literatura barata.
Se Bocage soubesse que o seu nome assina hoje tanta piada insulsa e ordinária, riria talvez – ele que em tantas vezes soube rir de si mesmo – , riria com aquele riso de imortalidade que já antevia, ao sentir-se resvalar na decadência do fim: «Eis, no marco fatal, meu fim terreno! / Mas surgirei nos astros / Para nunca morrer! / Com riso impune, / Lá, zombarei da sorte».
Não foi, na verdade, com esta fama popular, aviltante, que Bocage sonhou. Tê-la-ia desdenhado e repelido se pudesse conhecê-la. Foi pela imortalidade do seu puro nome de poeta que se bateu sem descanso. Foi com a esperança dessa imortalidade que se consolou, nas horas amargas, das misérias do seu destino. Mais, ainda: foi ela que lhe permitiu encarar com serenidade quase alegria a morte próxima. A antevisão do pranto que os seus compatriotas fariam por ele, a certeza de permanecer na memória dos homens, arrancou-lhe alguns desses brados triunfais em que a sua lira é fértil, e modelou em frases lapidares uma exaltação que tem alguma coisa de teatral e de comovedoramente ingénuo – a volúpia das homenagens póstumas: «Meus dias murcharão, mas não meus louros».
( Cont. )
Os meus links