«ENSAIO CRÍTICO ANALÓGICO»
Por
Assis Machado
( 6ª ) (10ª)
Camões, grande Camões, quão semelhante ( a )
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! ( b )
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, ( b )
Arrostar co' o sacrílego gigante; ( a )
Como tu, junto ao Ganges sussurrante, ( a )
Da penúria cruel no horror me vejo; ( b )
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, ( b )
Também carpindo estou, saudoso amante. ( a )
Ludíbrio, como tu, da Sorte dura ( c )
Meu fim demando ao Céu, pela certeza ( d )
De que só terei paz na sepultura. ( c )
Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!... ( d )
Se te imito nos transes da Ventura, ( c )
Não te imito nos dons da Natureza. ( d )
Barbosa du Bocage
In RIMAS
I
Temos perante nós um dos mais emblemáticos e, provavelmente, um dos mais conhecidos e estudados poemas de Bocage. Esta forma e modelo de poesia é designada em todos os tratados literários universais de “Soneto”.
O Soneto (originariamente o vocábulo significava "pequeno som") é um tipo de poesia de forma fixa, ou seja, utiliza métrica (medida dos versos), esquema de rimas (forma de terminação de cada verso) e a cadência dos vocábulos (ritmo).
É geralmente composto, na sua forma textual, por 14 (catorze) versos, distribuídos por duas quadras e dois tercetos (soneto italiano). Modernamente há mais umas tantas disposições esquemáticas, todavia interessa-nos aqui a forma convencionalmente apelidada de “clássica”, que é o presente caso que nos ocupa.
O Soneto clássico integra versos decassílabos (dez sílabas poéticas) ou dodecassílabos, também chamados de alexandrinos (doze sílabas poéticas).
Também aparece muito sob a forma de 03 (três) quadras e 01 (um) dístico (dois versos). É o clássico soneto inglês ou Shakespeareano.
O esquema mais frequente de rima apresenta-se da seguinte forma: abba – abba – cde – cde. Este é o modelo comum chamado “italiano”.
Quanto às terminações dos versos existem variantes, um pouco ao sabor da inspiração e da sensibilidade estética de cada poeta.
Recordo que, na forma como estão dispostos, chamamos aos versos “a ... a” interpolados; aos versos “bb” emparelhados e aos versos “c,d,c”/ ”d,c,d” cruzados.
Na moderna poética tem-se cultivado o “soneto branco”, isto é, com catorze versos sem rima mas com métrica (versos decassilábicos e alexandrinos).
Relativamente à cadência (ou ritmo) lembramos que as formas mais convencionais, desde os tempos do seu aparecimento, são as que respeitam em cada verso a acentuação na 6ª e 10ª sílabas – versos heróicos – ou nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas – versos sáficos.
Quanto ao nosso caso, vejamos :
a) Estrutura textual : duas quadras (quatro versos cada) e dois tercetos (três versos cada)
b) Forma rimática : a,b,b,a / a,b,b,a / c,d,c / d,c,d //
c) Forma cadencial : 6ª e 10ª sílabas, portanto, versos heróicos.
Chamo apenas a atenção para alguns artifícios/técnicas do poeta – o que poderá ser entendido como virtuosismo rítmico. Refiro-me às “sinalefas” ou às “sinéreses”.
SINALEFA é o nome que se dá ao recurso que o poeta usa para juntar a última vogal de uma palavra com a primeira vogal da palavra seguinte, formando uma só sílaba.
SINÉRESE é o nome que se dá ao recurso que o poeta usa para juntar numa só sílaba, as vogais que, dentro da palavra, gramaticalmente seriam contadas em separado.
A aparente rigidez de seus traços formais possibilitou ao Soneto chegar praticamente incólume até à actualidade. Raras excepções o modificaram para lá das formas originais que lhe deram os seus primeiros cultores: Dante, Petrarca, Sá de Miranda, Camões, Shakespeare e outros grandes clássicos.
Terá sido Francisco Petrarca quem mais contribuiu para a sua difusão pelo Ocidente Europeu.
Houve uma fase de grande desinteresse por esta forma poética. No Século XVIII poucos foram os seus cultivadores na Europa. O nosso Bocage foi uma das raras e brilhantes excepções. Todavia há um grande ressurgimento do Soneto, no Século XIX, por influência dos grandes românticos, parnasianos e simbolistas que dele se serviram com mestria. Chegado até ao Século XX veio a sofrer grande desgaste com o desprezo a que foi votado pelos modernistas – a chamada revolução do verso livre. Mas por mais estranho que pareça e contrariamente a todas as previsões de críticos literários, que lhe entoaram o “fines diae”, até alguns dos mais radicais modernistas e muitos dos actuais pós-modernistas têm contribuído para a sua regeneração e resistência. Temos alguns casos de poetas portugueses que se distinguiram neste nobre estilo. Refiro-me a Florbela Espanca, Teixeira de Pascoaes, Jorge de Sena e até o próprio Fernando Pessoa o praticou com algum sucesso. Nos nossos dias todos sabemos que grassa novamente um enorme vazio no que diz respeito à arte do Soneto. Uns porque não gostam de facto dele e o desprezam, outros porque o desconhecem e outros, ainda, por falsa postura intelectualóide: dizem que não fazem sonetos porque estão fora de moda. Quanto a nós pensamos que o que existe verdadeiramente é um gritante défice de honesto e aturado estudo, já para não falar de engenho – coisa rara nos tempos que correm.
II
Bocage versejou de muitas e variadas maneiras mas onde atingiu a sua melhor perfomance foi no Soneto. Célebres poetas e amantes deste mesmo estilo afirmaram ter sido Bocage o melhor de todos em Portugal, incluindo Camões. E foi de facto com o génio lusitano que Bocage competiu. Competiu no sonho, competiu em honesto e aturado estudo e até, por força do destino, na sua estranha forma de vida.
Não obstante a formação humanística de base de cunho neo-clássico, no que diz respeito à sua obra poética, a sua intensa e vincada personalidade, a frequente violência do seu temperamento inconfundível, matizado por uma profunda e indelével sensibilidade, a auto-dramatizada obsessão face ao destino e à morte, denunciaram e anteciparam a era Romântica.
Poderemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a parcela mais genuína da sua obra é aquela que pode ser denominada de pré-romântica. Toda a sua poética demonstra um mundo muito pessoal e subjectivo da paixão amorosa, do sofrimento e da morte, marcas incontornáveis de génios predestinados.
E se ele, como sabemos, muito foi censurado e perseguido deveu-se, em grande parte, ao espírito mesquinho e obscuro da sua época. É que o poeta, com admirável perspicácia e intuição, punha o dedo acusador nas chagas sociais de um país de aristocracia decadente, aliada a um clero de corrupta índole.
Comprometidas ambas as classes com uma política interna e externa anacrónica para aquele momento restava aos cidadãos de boa fé uma vivência passiva e inócua e aos poetas e artistas uma resistência a toda a prova.
Também, descobre-se ali presente a exaltação do amor físico o qual, inspirado no modelo natural, e nas virtualidades do quotidiano citadino, afasta para longe todo o platonismo fictício de uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente disfarçado.
III
E que diremos, então, nós sobre a presente comparação que Bocage faz neste Soneto “Camões, grande Camões...”, pondo-se em destaque com o seu modelo preferido?
Talvez o que Bocage admirasse realmente em Camões fosse o lado "romântico", num sentido amplo da palavra, da sua vida, do seu "fado", e o seu temperamento individualista e inconformista, no que sentia alguma semelhança consigo próprio: ambos incompreendidos, votados ao esquecimento, marginais perseguidos pela sociedade:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Começarei, primeiramente, por destacar uma identidade e personalidade sui generis , obviamente genuína, que o coloca objectivamente passível de comparação.
Enquanto o romantismo de Camões foi subordinado pelo domínio da razão, que o classicismo maneirista impunha, Bocage – o poeta do Amor e da Liberdade – consegue sacudir as razões da razão e, embora diversificado na forma, dá livre curso ao potencial emotivo que o seu Eu possuía.
Analisando, mesmo ao de leve, o Soneto em epígrafe, direi que poderemos destacar, por exemplo, o tema. O tema é o descontentamento por se igualar a Camões apenas na infelicidade.
Mais direi que se destacam duas partes lógicas, o estado psicológico do poeta , a análise estilistica e quais os aspectos da sua vida que Bocage considera serem comparáveis aos da vida de Camões:
a) A 1ª Parte (versos 1 a 11) - O sujeito poético faz uma enumeração dos aspectos semelhantes com Camões;
b) 2ª parte (versos 12 e 14) - inesperadamente, dá conta do desgosto que sente por apenas se assemelhar ao génio nas desgraças.
O “estado psicológico” do sujeito poético sobressai pela constatação que várias semelhanças fazem sentir, ao sujeito poético, um certo conforto, na medida em que considera que alguém tão célebre e digno de mérito ("grande Camões”) teve uma existência e passos da sua vida idênticos aos seus, afirmando mesmo que Camões foi um modelo para si (v. 12).
0 sofrimento, causado pela sua vida de infortúnio, dor e desgraça é atenuado pelas semelhanças detectadas com Camões (embora deseje pôr fim a tanta infelicidade - vv. 10-11), pois é apenas no último terceto que o sujeito lírico realça o sentimento de tristeza ao dar-se conta de que o destino apenas o fez parecer-se com Camões nos aspectos negativos (vv. 12-13), não naquilo que Camões teve de grandioso, de extraordinário - o dom para a poesia (escrita). No verso 12, a exclamação completando o sentido da interjeição “Oh” confere um tom de desânimo, frustração às palavras que a seguir são proferidas.
Em poesia a expressão configura a forma, o ritmo, a sonoridade, o emprego das imagens ou das metáforas, a escolha das palavras ou das frases. É claro que o estilo também condiciona a forma, na medida em que lhe coloca marcas entre as quais o poema se vai desenvolver (isto é mais significativo no caso do Soneto).
Reparemos agora noutras particularidades:
Recursos estilísticos: a conjunção “Mas"; a apóstrofe; a repetição, o uso anteposto do adjectivo '”grande"; a metáfora (v. 4); a adjectivação expressiva (v. 5); o trocadilho (v. 7); o paralelismo antitético. Justificados pela maior expressividade dos versos requerida obviamente pelo poeta.
Aspectos semelhantes entre Bocage (motivo romântico: centralização na identidade do Eu) e Camões:
- o mesmo fado;
- a partida de Lisboa provocada por motivos semelhantes;
- o encontro com o Adamastor;
- a estada e a miséria na Índia;
- as saudades da amada;
- o ludíbrio da sorte.
Bocage afirma-se um seguidor de Camões: imitou-o na vida, entre Lisboa e a Índia, mas não conseguiu imitá-lo na capacidade de poetar. Crê-se marcado por um destino semelhante, que o levou para longe da Pátria, a saudade e a desventura; com Camões parece ter aprendido a arte do Soneto e, talvez, algumas atitudes mais conotadas com a sua personalidade.
Competindo, assim, com Camões ('Camões, grande Camões, quão semelhante / Acho teu fado ao meu, quando os cotejo') Bocage conseguiu ser um dos maiores poetas da Literatura Portuguesa, trazendo a poesia lírica para o plano terreno, quotidiano e burguês. De pés cravados no solo, agitava-o uma “doença cultural” que principiava a contagiar os espíritos mais sedentos de novos caminhos: a ânsia metafísica. Com efeito, sendo um sequioso de metafísica, sentiu-se impossibilitado de superar o fascínio que em sua imaginação e sensibilidade exerciam os estímulos da vida terrena. Por outro lado, Camões deambulava em esferas metafísicas, incapaz de ajustar-se ao mundo contingente; todavia, mesmo quando se sentia 'bicho da terra, vil e pequeno', a sua visão permanecia transcendental. Assim a poesia de Bocage irrompendo das vísceras, do sangue, dos ossos, entranha-se em sentimentos menores que procuram ardorosamente escapar de seu círculo de fogo e ascender para as regiões etéreas. Resumindo, para Camões a terra significava a dimensão do existir, ou do não-ser: para Bocage, seu terreno próprio e definitivo... Para o luso Príncipe dos Poetas, os espaços sobrenaturais constituíam a morada do ser, enquanto para o Vate Sadino se afiguravam o símbolo perfeito do inatingível.
Quando Bocage morreu, o solo já estava preparado para o advento das verdades novas trazidas pelo Romantismo. Se o seu ensinamento não foi imediatamente aproveitado, se a sua obra não foi de pronto erguida ao plano em que se encontra hoje – para gáudio dos seus imensos simpatizantes, como nós – é porque a sua língua destemperada tinha feito das suas.
F I M
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