ESPAÇO COLECTIVO ARTISTICO E CULTURAL - COORDENADO PELA POETISA AMÉRICA MIRANDA - E ONDE SE INSEREM AS CONTRIBUIÇÕES DE TODOS OS TERTULIANOS, TANTO EM VERSO COMO EM PROSA, COM O OBJECTIVO DE DIVULGAÇÃO E HOMENAGEM AO GRANDE POETA ELMANO SADINO !
Terça-feira, 7 de Novembro de 2006
BOCAGE E OS SEUS ABRIGOS

Por
Fernando Eloy do Amaral
Bocage chegara a Lisboa. O sonho da Índia e das suas glórias, os famosos feitos, a riqueza adquirida, as longas epopeias escritas, foram nuvens desfeitas pelos ventos da realidade prosaica, pela mesquinhez do tempo, pelas torpes invejas, pela nobreza nunca subserviente do orgulho inerente ao génio ansioso de liberdade e grandeza.
Bocage chegara finalmente à capital do Reino alquebrado e desiludido, com versos de oiro, saudades e anseios de novos ares. A desilusão amorosa, o ressentimento sentido pelos seus familiares, a falta de proventos, levaram-no à conclusão de que estava só, que o seu Fado teria de ser simplesmente o capricho de um destino.
Bocage apenas possuía o génio e os seus frutos, alguns amigos dedicados que o receberam delirantemente, manifestações populares e admiração de eruditos. Porém, se o seu espírito tinha abrigos noutros espíritos superiores e nas almas singelas, o seu corpo, revestido de vestes sem beleza, não possuía o abrigo, o recanto, embora modesto, para descansar fadigas, para restaurar noitadas.
Bocage, o sem abrigo, teve de aceitar, de cabeça erguida, o albergue que lhe era dado pelos admiradores do seu génio, pelos amigos mais afortunados de bens materiais ou ébrios de poesia como ele, mas que tinham lugar para dormida e retempero corporal. Antes de arranjar casa própria Bocage andou à deriva, ora aqui, ora ali, pernoitando nos sítios mais diversos. Assim, Bocage passava as noites na cela de um frade versejador, no conventículo da Boa Hora ou dos Paulistas, com o Frei João de Pousafoles, compartilhando pousada com José Agostinho de Macedo, admirador confesso do seu génio antes da inveja desabrochar nele, na botica do Azevedo onde escrevia versos nas paredes, na casa de um amor passageiro e nas noites em que se deixava adormecer depois dos improvisos e da genebra, no Café Nicola, onde ficava sob os zelosos cuidados do sempre fiel amigo e fanático adorador José Pedro da Silva.
Quando da sua prisão, a bordo da corveta Aviso, vivia o famigerado poeta com o cadete do Regimento da Armada André da Ponte do Quental na Praça da Alegria, onde primeiramente o foram procurar os “moscas” do Senhor Intendente que lhe vasculharam os papéis e levaram o leal amigo como cúmplice de ideias revolucionárias de grande perigo para a mansidão do Reino.
Morava o poeta no Terreiro quando da sua ida para o Hospital Real de São José onde ficaria uns dias a curar-se de doença secreta. Alguns foram os amigos que lhe proporcionaram conforto mais duradouro e familiar.
José Salinas de Benevides hospeda por uma temporada o poeta na sua casa de Santarém. A família Bersane Leite acarinha o Vate, tão apreciado, com requintes de afeição aplicável a criança mimada e convalescente. Tomé Barbosa abre-lhe as portas de sua casa onde Bocage permanecerá algum tempo descuidado ou, melhor, somente preocupado com a sua Musa.
Nas várias visitas que gostava de fazer aos arredores de Lisboa, Bocage encontrava sempre um recanto onde ficar e amigos satisfeitos com a sua presença. Pouco antes de falecer, esteve Bocage hospedado em casa do Conselheiro José Andrade de Carvalho, na Calçada de Santo André, indo depois para a sua residência, que então já possuía, quando a doença lhe tornou a existência mais tormentosa.
Dos muitos abrigos de Bocage, não falando na casa onde nasceu e viveu menino e moço, numa casa situada em Almada onde com sua família passou alguns anos da sua infância, resta-nos recordar a da rua das Violas, no Sítio da Ilha Seca, quando da breve estada no Rio de Janeiro e aquela, de curiosa arquitectura, que habitou quando em Damão.
Bocage, o sem abrigo, resolve em 1802 arranjar casa própria, mais para abrigar a dedicada irmã Maria Francisca e sua sobrinha, do que o seu corpo prematuramente envelhecido. A sua casa é agora a da Travessa André Valente onde a morte o foi encontrar lúcido de espírito, pujante de génio e fisicamente arruinado.
No dia 22 de Dezembro de 1805, o dia seguinte do passamento do genial Poeta Bocage encontra a definitiva morada, o derradeiro abrigo, num singelo coval do Cemitério das Mercês, tão próximo da última residência quando vivo.
Bocage, hoje, mora na mente e nos corações dos que sentem a Poesia, abriga-se na simpatia popular e na admiração insuspeita dos eruditos.